
No dia 21 de março, o mundo celebra duas datas significativas que, embora distintas, se entrelaçam na busca por uma sociedade mais justa e igualitária: o Dia Mundial da Poesia e o Dia Internacional da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial. A partir da importância e o diálogo entre as comemorações, é importante destacar a relevância da poesia como forma de resistência e expressão cultural na luta antirracista.
O Dia Internacional da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial foi instituído pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) em 1966. A data – 21 de março – foi escolhida em memória do massacre de Sharpeville, na África do Sul, ocorrido seis anos antes, quando a polícia atirou em manifestantes pacíficos que se opunham às leis de apartheid, em 1960. Desde então, o dia é utilizado para promover a luta contra o racismo e a discriminação racial em todo o mundo.
Já a homenagem à expressão artístico literária – Dia Mundial da Poesia – foi instituída pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) em 1999. A data foi escolhida para celebrar a diversidade linguística e cultural, bem como para promover a poesia como uma forma de expressão artística e de reflexão sobre a condição humana. De 99 em diante, tal data passa a ter um novo significado: não apenas homenageia a arte, mas também ressalta a urgência de transformar as palavras em ações concretas contra a discriminação racial.
Segundo a pesquisa “Percepções sobre o racismo no Brasil”, conduzida pelo Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec) a pedido do Instituto de Referência Negra Peregum e do Projeto Seta, 51% dos brasileiros afirmam já ter sido testemunhas de atos de racismo. Além disso, 60% da população acredita que o Brasil é, sem dúvida, uma nação racista, enquanto 21% concordam em parte com essa afirmação.
Os dados revelam que os marcadores sociais de raça, cor e etnia são vistos como fatores cruciais que explicam as desigualdades por 44% dos entrevistados. No entanto, apenas 65% dos participantes concordam, total ou parcialmente, com a criminalização do racismo no país.
A pesquisa, que teve abrangência nacional e incluiu 127 municípios, foi realizada em abril de 2023, sendo considerada uma das mais recentes que abordam a temática. Um aspecto intrigante é a aparente contradição nos dados levantados: enquanto a maioria dos brasileiros relata vivenciar o racismo, apenas 11% admitem ter comportamentos racistas, e 10% afirmam que suas instituições são racistas. Essa situação reflete padrões semelhantes a levantamentos sobre a violência contra a mulher, onde a maioria não reconhece os agressores, mas que, neste caso, 46% afirma conhecer as vítimas de atos racistas.
Além disso, 12% dos entrevistados identificam familiares como perpetuadores de racismo, 36% mencionam pessoas próximas, e 13% relatam estudar em instituições onde o racismo é enraizado. O resultado explana algo que já é reconhecido por alguns: apesar de ser um país diverso e heterogêneo, o Brasil é uma nação que ignora sua história e que repete erros do passado, a ignorância e o preconceito racial são alguns dos mais presentes na sociedade.
Entre o diálogo e a reflexão crítica: uma educação antirracista

Para o palestrante e professor de Língua Portuguesa, Christoffer Carvalho, a educação antirracista é um sistema de confronto. Christoffer – também conhecido nas redes como Tio Chris – diz que “Nós vivemos num campo de adversidade. Lidar com a educação é lidar com a adversidade, porque a educação é a ferramenta para poder revolucionar o mundo”.
O autor e coordenador geral do Baobá Educação Antirracista, projeto socioeducacional, que visa sistematizar a Educação Antirracista, implementando a Lei N° 10.639/03, alterada pela Lei N° 11.645/08, nas escola públicas do Rio Grande do Norte, garante que tal revolução se dá pela intelectualidade. “Quando o adolescente adquire essa consciência, ele começa a se reposicionar de forma diferente na sociedade”, afirma o docente.
O professor diz enxergar que o sistema etnico-social disposto nas escolas públicas e privadas refletem na consciência e reconhecimento desses jovens. Se na escola pública a população negra é maioria e no ensino privado a população branca e classe média prevalece, isso impacta diretamente na interpretação de mundo desses indivíduos e os fazem reproduzir comportamentos nocivos. Em explicação a isso, o palestrante afirma que “crianças e adolescentes negros que não se consideram negros, e em consequência disso, acabam sendo racistas com outras crianças e adolescentes negros”, explica o professor, sobre o ciclo de violências nos níveis micro e macro.
Os dados do Censo Escolar de 2020 reitera o que ja foi dito pelo docente, a presença de alunos negros nas escolas privadas é, em média, de apenas 10% do total de estudantes. Essa pesquisa, conduzida pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), aponta que há uma correlação entre o custo da instituição e seu desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem): quanto mais elevada é a mensalidade e melhor a classificação no Enem, menor é a proporção de alunos negros e pardos nas escolas.
Christoffer assegura que uma das maiores adversidades da luta antirracista é essa: a de abrir os olhos desses jovens que não sabem da potência de sua negritude, onde a negação de si blinda essas crianças e adolescentes de enxergar o quão sorrateiro e covarde é o racismo: onde coloca uns contra os outros. Além disso, é importante assegurar que a luta antirracista não é uma luta dos pretos para si, é uma luta coletiva e os brancos também precisam ser antirracistas. Para o professor, isso é fundamental, afinal de contas, são os brancos que estão [majoritariamente e sistematicamente] no poder. Com isso, a mudança precisa ser coletiva, para que o bem seja coletivo.
O palestrante confidencia sobre as observações feitas no setor: “conforme eu fui entrando em contato com a realidade sociorracial dentro da comunidade escolar, dentro das escolas públicas, eu percebi a necessidade de fazer uma movimentação de desenvolvimento da consciência, de passar a consciência dos meus alunos a partir do cientificismo. E a partir daí, eu comecei a perceber a necessidade de desenvolver a educação antirracista. Eu não descobri a roda, eu só senti a necessidade a partir da minha consciência”, afirma o educador que desenvolve pesquisas na área das relações étnico-raciais.
Para ele, trabalhar com literatura, trabalhar com poema, com poesia, é permitir ser tocado pela sensibilidade. “A literatura nos possibilita essa ruptura como concreto para que, a partir do abstrato, a gente possa visualizar as adversidades da sociedade”, garante. Tio Chris ainda afirma: “Quando a gente pensa em literatura ou em poesia, a gente pensa em literatura periférica. O slam é uma movimentação literária poética periférica de extrema relevância. A poesia tem essa função de sensibilizar”.
Uma poderosa ferramenta de denúncia e também de reconstrução da oralidade

Entre a pedagogia antirracista e a cultura slam está Oyá Iyalê, pedagoga, pesquisadora e poeta potiguar. A educadora, assim como o professor Christoffer, acredita que a arte tem o poder de transformar a realidade. “Em vários momentos da nossa história, a gente viu como os movimentos artísticos interferiram diretamente na sociedade, nas mudanças, a arte provoca mudanças sociais”, garante Oyá. A educadora afirma que a partir do inconcreto, a arte consegue modificar o concreto, porque ela toca as pessoas.
“Eu acredito que a arte, ela também tem esse poder na luta contra o racismo. Na luta contra as perspectivas eurocêntricas e colonialistas que foram impostas a gente. Então, como ela tem o poder de transformar a sociedade, ela pode agir diretamente nessas doenças sociais”, reflete a slammer.
Oyá Iyalê acredita que o slam é uma arte em ascensão. “É uma arte nova, porém, em grande ascensão. Justamente porque tem um impacto social muito grande, um impacto artístico muito grande. É a oralidade viva e pulsante, tocando as pessoas, transformando pensamentos, mobilizando ações, movimentos”, assegura.
A especialista em História e Cultura Afro-brasileira diz ainda que “a gente foi ensinado de que a palavra escrita é que era oficial. E isso foi uma forma de resistência. De silenciar povos negros, povos indígenas, e o slam é a retomada da oralidade, é uma forma de a gente reconstruir o valor da palavra”, revela a pesquisadora. Para ela, resistir de tal maneira é estar sintonizada com as necessidades políticas e sociais e lutar para que algo seja feito.
“O slam é a poesia marginal. Ela lida diretamente com as vozes que são silenciadas, que estão marginalizadas. É um grito das classes sociais mais marginalizadas. Um grito poético, um grito literário, um grito artístico!”, declara Oyá Iyalê.
Segura de que a juventude é o nosso futuro, Oyá Iyalê ressalta o papel dos jovens: “é a transformação, a perpetuação e a continuidade da nossa arte, da nossa cultura, então eu acredito que a juventude é nossa força, é o futuro ancestral, é a gente conseguir olhar pra frente e ver que a gente continua”, conclui a artista.
Aquilombamento como experiência terapêutica na universidade

Thiago Laurentino, psicólogo da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (Proae), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, idealizou em 2019, o Aquilombar, projeto inspirado em um curso sobre Psicologia Preta do qual Laurentino participou. Desenvolvido entre 2020 e 2022, a ação proporcionou discussões e práticas voltadas para o resgate de perspectivas afro-referenciadas, pouco difundidas devido ao racismo estrutural. O projeto de extensão foi premiado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) na segunda edição do Prêmio Profissional Virgínia Bicudo: Práticas para uma Psicologia Antirracista, na edição de 2023.
O psicólogo afirma que “os feedbacks dos estudantes é o principal motivador da continuidade dessas atividades, porque eles realmente relatam que isso faz diferença na vida acadêmica deles, a possibilidade deles encontrarem pessoas semelhantes, discutirem sobre coisas que eles passam na universidade de maneira semelhante”.
Laurentino cita os principais problemas enfrentados e dialogados no Aquilombar, onde a vivência preta é a discussão central da atividade até então extensionista. “Isso tem a ver com as dificuldades financeiras, a dificuldade social de ser a primeira pessoa da família que está entrando muitas vezes na universidade, isso diz respeito à dificuldade de locomoção na cidade, isso diz respeito à locomoção em relação ao transporte público, mas também em relação a como uma pessoa negra pode circular na cidade, ocupar espaços”.
Apesar da importância do aquilombamento como experiência terapêutica de reconhecimento, pertencimento e troca, o idealizador relata um certo desgaste para acreditarem na importância do projeto atualmente, o que dificulta a retomada. Ele garante que submeteu o projeto no edital de extensão, com atualizações. Além disso, ele informa que, apesar do processo ‘passar’, o parecer não foi tão favorável assim.
“O parecer que a gente recebeu era um parecer de que a psicologia preta não tinha comprovação científica, que o projeto precisaria passar primeiramente por um comitê de ética que tinha cunho de pesquisa”, relata Thiago.
O responsável pelo Aquilombar teve de enfrentar a não recomendação no parecer. “Não só que não tivesse recurso disponível, mas que o projeto não fosse executado, não deveria ser executado. Apesar desse parecer, o projeto foi aprovado para execução sem nenhum recurso”, lamenta. O recurso financeiro viabilizava a realização do projeto de extensão, além de garantir bolsa para alunos. Com esse entrave, Thiago diz não ter certezas do que está por vir sobre a continuidade do Aquilombar neste ano, mas hipóteses estão sendo estudadas. “Eu poderia levantar uma chamada para os estudantes que quisessem tocar o projeto, trabalhar no projeto de forma voluntária, sem nenhuma bolsa”, cogita o responsável.
Projetos antirracistas, como o de Thiago Laurentino, buscam dialogar com a vivência de pessoas pretas em contextos de ocupações de espaços na cidade e nas universidades e são fundamentais para o combate ao racismo estrutural, que ainda persiste de maneira alarmante no campo acadêmico. Apesar dos avanços e do crescente reconhecimento social da importância de ações que promovam a igualdade racial, muitos desafios permanecem.
A resistência e o desconhecimento sobre a realidade das vivências negras dificultam a efetivação de políticas inclusivas, perpetuando um ambiente hostil e excludente. É crucial que as instituições de ensino superior adotem uma postura proativa, implementando iniciativas que não apenas reconheçam as desigualdades, mas que também promovam um espaço de aprendizado e valorização das experiências e contribuições da população negra, essencial para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e inclusiva.
Cultivar o que pertence à periferia: Conexão nas Ruas

O Poti conversou também com dois representantes do Conexão nas Ruas (CNR), a Gaby – também conhecida no meio cultural como T. Barroz – e o Lucca Costa, ambos compõem o projeto e fazem parte da cena artística natalense. O Projeto inteiramente pensado para a cultura periférica traz luz ao fazer arte nos cantos marginalizados da cidade. Surgindo de duas ideias diferentes, entre evento ou projeto social, o CNR transformou-se em um combo de desejos partindo da conexão de um grupo de amigos que queria que a arte, a cultura periférica e o artista potiguar tivessem mais visibilidade.
Para T. Barroz, vivenciar a realização desse projeto é revolucionário. “quando a gente chega nas comunidades a gente traz as expressões artísticas, os elementos do hip-hop, o grafite, o MC, o bboy, a bgirl, que é uma cultura periférica que é descriminalizada”, relata. Para ela, fortalecer essa cultura é ser resistência e garantir que a luta não seja só contra o racismo, mas contra a LGBTfobia e a luta pela vivência digna de pessoas racializadas, periféricas ou que se encaixam, de alguma forma, em uma minoria marginalizada.
“Quando a gente leva um grafite [à comunidade], a gente consegue ampliar a mente de uma criança desviando a atenção dela da criminalidade, mostrar que existem outros caminhos. Então, assim, a gente atua diretamente com essa causa”, Gaby assegura. A produtora cultural afirma que “todo mundo quer ser como o preto, mas ninguém quer viver o que o preto vive”, reflete.
Além de toda a questão racial e social, há a questão de gênero no caso da Gaby, que diz saber o que sua presença no projeto representa, não apenas para ela, como para outras meninas que a veem neste espaço: “Falando assim, por mim, eu sou a única mulher [que iniciou o projeto], e a única mulher preta do grupo, eu sou a representatividade do que a gente vive”, testemunha T. Barroz. Em sua fala, a produtora sinaliza os estereótipos raciais e sexistas que – tentam – limitar a vivência da mulher preta.
Abordado sobre a força da arte nas comunidades, Lucca diz que fica evidente que o que mais tem na periferia é talento, mas o que mais falta é oportunidade. “Eu me reencontrei na poesia, cresci na poesia, gosto desde criança e escrevo muito, porém por falta de apoio financeiro e incentivo até dentro das escolas a gente acaba deixando isso de lado”, explica o poeta. Para ele, a poesia é mais que um aperfeiçoamento, mas um dom. “A gente acaba deixando esse dom de lado. Porque a poesia é isso [um dom]”, assegura o artista.
Lucca revela que é normal que talentos de dentro da comunidade sejam postos de lado para se sujeitar a trabalhar para sobreviver. E reflete ainda: “Se sujeitar a ter que trabalhar para sobreviver. É o básico. Sobreviver”. Na batalha entre o dom e a necessidade, quase sempre vence o segundo.
Mas no fim, Lucca garante: “a conexão com a arte que salva vidas!”. Como já dito por Oyá Iyalê, “é uma forma de reconstruir o valor da palavra”, e por meio delas, fazer revolução.