Avenida Tavares de Lira: o epicentro do pecado e do comércio durante a Segunda Guerra - O POTI

Avenida Tavares de Lira: o epicentro do pecado e do comércio durante a Segunda Guerra

Foto: Luiz Grevy da Silva/Arquivo IBGE.

Os passos que ecoam pelas calçadas desgastadas da avenida Tavares de Lira carregam consigo séculos de histórias entrelaçadas, um mosaico de lembranças que se mescla com o aroma salgado do mar e o sussurrar do vento que varre as lembranças da Ribeira. Hoje, o asfalto desgastado é testemunho silencioso de uma trajetória que vai muito além do concreto.

A avenida Tavares de Lira foi um palco político fervilhante nas eras das oligarquias, onde comícios acirrados desenhavam debates inflamados. Mas a avenida era mais que política, era também o pulsar de casas comerciais, o coração econômico da região.

“Durante todo o período das oligarquias, esse foi um dos locais mais importantes do ponto de vista político, uma vez que não era apenas a sede de partidos políticos, mas, também, local da realização de comícios que muitas vezes geravam discussões, brigas, e até mesmo confrontos armados entre civis e guarda civil”, conta o historiador Henrique Lucena.

No início do século XX, a Tavares de Lira se vestia com ares cosmopolitas. Pilotos de diversas nacionalidades desfilavam por suas margens, e durante a Segunda Guerra Mundial, a avenida transformou-se no palco por onde soldados aliados e brasileiros marchavam.

Nesse período, o local viu passar membros da família Faissal da Arábia Saudita, estrelas de Hollywood e até mesmo espiões nazistas. Em suas calçadas, histórias comuns se misturavam com os rumores da guerra, e Zé Areia, figura pitoresca, protagonizava suas peripécias com estrangeiros.

Barco com pescadores chegando para atracar no cais do antigo Porto de Natal. Foto: Naryelle Keyse.

A avenida, que começa no antigo Porto de Natal e se estende ao que chamamos hoje de praça José da Penha, é o berço da pescaria da cidade do sol. Com a nostalgia estampada no olhar, Alexandre Matos, morador local, fala de quando chegou para viver nos arredores, aos 10 anos de idade.

“Era muito bom, na época tinha uns passeios de barco para a Redinha. As famílias vinham pra cá e ficavam numas barraquinhas em que o pessoal vendia lanches”, relembra emocionado os últimos 50 anos de sua vida.
Alexandre Matos observando a pesca de um colega. Foto: Naryelle Keyse.

Ele conta ainda que durante esse tempo construiu muitas amizades enquanto pescava no pequeno cais que dá início à avenida Tavares de Lira, um deles é José Olímpio, com quem tem uma amizade de mais de 30 anos.

Seu José é uma figura marcante que se destaca em meio aos pescadores do porto, sempre vestindo uma camisa listrada, suspensório e boina, tem um ar de senhor francês. E é com esse espírito de estrangeiro que ele relembra a vida de anos atrás.

José Olímpio, figura que é parte da história da avenida Tavares de Lira. Foto: Naryelle Keyse.
Quando eu comecei a frequentar, a Ribeira era outra Ribeira. Era vibrante, cheia de comércios, era um lugar que tinha de um tudo, desde peças em Ciro Cavalcante a ferramentas em Galvão Mesquita. Isso era uma beleza, mas a Ribeira tem realmente decaído”, desabafa. “Essa é uma rua linda, pitoresca, cheia de histórias. Essa era a rua do pecado e do comércio, das mulheres bonitas, a rua da jogatina. Era onde os senhores de engenho vinham fazer suas apostas”, diz com uma olhar divertido e retrospecto.

Dentre tantas barracas encontramos a pequena peixaria do Ferrinho, que ocupa o térreo de um prédio histórico na avenida Tavares de Lira. É lá que Jales de Souza vende os peixes que pesca em alto mar.

Ele é mais um dos inúmeros pescadores que acompanharam o desenvolvimento e a decadência da avenida que foi o auge da política, do comércio e das casas de drinks de Natal. Jales lamenta a falta de atenção do Poder Público para com a avenida. “Quando eu cheguei isso aqui era tudo barraco, ainda não tinha asfalto, era tudo na pedra e o comércio era muito bom. Infelizmente, hoje a burocracia atrapalha o comércio e a vizinhança”, lamenta sem tirar o sorriso do rosto enquanto abre o frigorífico para mostrar os pescados do dia.

Jales de Souza exibe os pescados do dia. Foto: Naryelle Keyse.

Entre os comerciantes que conseguiram autorização para ocupar uma parte dos prédios da Tavares de Lira está o vendedor Joel Lisboa, que trabalha em uma loja de artigos para pesca. Ele diz que muitos conhecidos ainda tentam trazer a velha Ribeira de volta à vida agitada.

“O pessoal ainda tenta investir aqui, em alguma coisa, mas tem uma burocracia muito grande por parte do IPHAN. Eu conheço muita gente que tentou investir na Ribeira, principalmente aqui na avenida Tavares de Lira, que, por causa das exigências do IPHAN, desistiram. Por exemplo, teve um amigo que já tentou abrir um comércio aqui, mas o IPHAN queria que [ao reformar o prédio] ele colocasse uma telha parecida com a época em que o prédio foi construído. Isso ele só encontraria em Recife e custava o triplo do valor de um telhado normal”, conta ele, que é um dos mais jovens entre os comerciantes da avenida.

Revitalização da Ribeira

Há muitos anos se discute a possibilidade de uma revitalização no bairro da Ribeira, mas o assunto ganhou novos capítulos no último mês, quando uma série de imagens geradas a partir de Inteligência Artificial viralizaram na internet.

As imagens fazem parte do projeto “Nova Ribeira” do artista gráfico Ronkaly Souza, em que ele usou a IA e a imaginação para revitalizar alguns pontos do bairro histórico de Natal.

“Ao ver a repercussão da série percebi que muita gente também queria ver isso: nossa cidade restaurada, com seus próprios olhos. Fazer esse sonho conjunto se tornar real, mesmo que no digital, faz as pessoas acreditarem mais e olharem para um objetivo em comum. Só isso já pode ser um passo inicial para tornar o sonho realidade”, afirma o artista.

A grande repercussão em torno do trabalho de Ronkaly e do sonho de muitos natalenses chamou a atenção do Poder Público municipal, que solicitou a realização de uma audiência pública para discutir a possibilidade de colocar o projeto em prática.

No último dia 4 de dezembro, representantes da sociedade civil e de diversos órgãos públicos se reuniram na Câmara Municipal para debater o assunto. O secretário de Meio Ambiente e Urbanismo de Natal, Thiago Mesquita, apontou as regras do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como o maior empecilho para projetos como o imaginado por Ronkaly.

“Para você ter uma ideia, o processo hoje de autorização do IPHAN demora anos. Imagine quem vai investir ter que gastar 20 vezes mais para restaurar um imóvel do que se ele tivesse com a mesma metragem construindo em uma área densável em outro bairro de Natal”, disse o secretário durante a audiência.

Apesar disso, Mesquita disse que a prefeitura do município tem tentado reerguer o bairro economicamente, transferindo sedes de órgãos do poder executivo municipal para o bairro e revitalizando algumas ruas. De acordo com ele, foram investidos cerca de R$ 30 milhões nas obras de revitalização da Avenida e do Contorno e na Pedra do Rosário.

“O gabinete do prefeito já está funcionando na Ribeira, assim como já temos algumas secretarias instaladas e outras a caminho, como a Secretaria Municipal de Saúde. O Novo Plano Diretor também estabeleceu a possibilidade de parcerias público-privada mediante um instrumento chamado de arrecadação de imóveis abandonados, imóveis que estão há mais de 5 anos recolhidos, o que gerou uma nova procura pela área”, concluiu.

Pinturas restauradas

Na última sexta-feira (8), o prefeito de Natal Álvaro Dias anunciou que a prefeitura fechou uma Parceria Público-Privada (PPP) com a empresa Super Cola Natal para a revitalização das pinturas dos prédios da Ribeira e do Centro Histórico do Natal. Segundo o prefeito, a empresa doará tintas para os prédios e espaços que compõem essas regiões.

Para que as restaurações sejam realizadas é necessário uma autorização do IPHAN, com base na portaria 420/210. O texto versa sobre as categorias de intervenção, dentre elas a de pinturas, que se enquadra na categoria Reforma Simplificada: obras de conservação ou manutenção que não acarretem supressão ou acréscimo de área. De acordo com a portaria, é necessário que o solicitante da reforma envie, além dos documentos habituais, as especificações dos materiais que serão usados no reparo, como a definição dos materiais, acabamentos e procedimentos de execução.

A Prefeitura do Natal informou que todas as autorizações já estão liberadas pelo Instituto ou em andamento. “Já temos autorização do IPHAN para a pintura das fachadas do entorno da Praça Augusto Severo. O prédio localizado no cruzamento das avenidas Duque de Caxias com Esplanada Silva Jardim, onde funciona atualmente o gabinete do prefeito, tem seu processo em trâmite. E há também um decreto para que todas as fachadas de prédios de interesse turístico possam ser revitalizadas”, informou Danielle Mafra, secretária executiva de Parcerias Público-Privadas.

A torcida, a partir de agora, é que essas iniciativas em prol da revitalização do bairro da Ribeira finalmente saiam do papel e se concretizem, trazendo de volta vida e beleza a esse importante espaço boêmio e histórico da cidade.

Edição: Larissa Cavalcante.