Seis anos, sete meses e dezessete dias após o atentado que vitimou a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, o 4º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro proferiu, nesta quarta-feira (30), a sentença que condena os ex-policiais militares Ronnie Lessa (78 anos, 9 meses e 30 dias) e Élcio Queiroz (59 anos, 8 meses e 10 dias) pelos crimes. O caso, ocorrido em 14 de março de 2018, reverberou nacional e internacionalmente, intensificando o debate sobre violência e impunidade no Brasil.
Ronnie Lessa, responsável pelos disparos, e Élcio Queiroz, que dirigiu o veículo utilizado no crime, foram condenados pelos seguintes crimes:
- Duplo homicídio triplamente qualificado: considerando a motivação torpe, a emboscada e o uso de recursos que dificultaram a defesa das vítimas;
- Tentativa de homicídio contra Fernanda Chaves, assessora de Marielle Franco, que sobreviveu ao ataque e compareceu ao julgamento como testemunha;
- Receptação de um veículo clonado, um Cobalt prata, usado para seguir e atacar a vereadora.
Acordo de delação premiada
Embora as penas sejam rigorosas, Ronnie Lessa e Élcio Queiroz terão suas sentenças reduzidas devido ao acordo de delação premiada, que resultou em novos desdobramentos nas investigações, especialmente em relação aos possíveis mandantes do crime. O acordo estabelece os seguintes limites para o tempo de prisão:
- Élcio Queiroz deverá cumprir, no máximo, 12 anos em regime fechado;
- Ronnie Lessa deverá permanecer até 18 anos em regime fechado, seguidos de 2 anos em regime semiaberto.
A contagem do tempo de pena se inicia a partir da data da prisão de ambos, em 12 de março de 2019, contabilizando uma dedução de 5 anos e 7 meses já cumpridos. Com isso, Élcio Queiroz poderá ser liberado em 2031, enquanto Ronnie Lessa passará ao regime semiaberto em 2037 e poderá ser libertado em 2039.
O acordo também possibilitou a transferência de ambos para penitenciárias estaduais, retirando-os de presídios federais de segurança máxima. Lessa obteve ainda a devolução de uma residência de sua família na Zona Oeste do Rio, que estava sob bloqueio judicial. Contudo, qualquer omissão ou falsidade na delação premiada poderá invalidar o acordo.
Relembrando o caso
Em 14 de março de 2018, Marielle Franco, vereadora pelo PSOL, foi assassinada a tiros no bairro do Estácio, na região central do Rio de Janeiro, por volta das 21h30. Além de Marielle, que foi alvejada com quatro disparos na cabeça, o motorista Anderson Gomes também foi atingido e não resistiu. Fernanda Chaves, assessora da vereadora, estava no banco traseiro do veículo e sobreviveu ao atentado, ferida por estilhaços.
As investigações apontaram que Lessa e Queiroz seguiram o carro de Marielle desde a Casa das Pretas, na Lapa, onde ela havia participado de um evento. A dupla, utilizando o Cobalt prata clonado, emparelhou ao lado do veículo em que estavam Marielle e seus acompanhantes, disparando antes de fugir.
Veja a íntegra da sentença:
“O júri é uma democracia. Democracia esta que Marielle Franco defendia.
Aqui prevalece a vontade do povo em maioria. Aqueles que atuam como os jurados nada recebem; prestam um serviço voluntário, gratuito, representando a vontade do povo no ato de julgar o semelhante, que é acusado de ter praticado um crime tão grave que é querer tirar a vida da outra pessoa.
Portanto, senhores jurados, obrigada em nome do Poder Judiciário. Obrigada em nome da população da cidade do Rio de Janeiro.
A sentença que será lida, agora, talvez não traga aquilo que se espera da Justiça. Talvez justiça que tanto se falou aqui fosse que o dia de hoje jamais tivesse ocorrido. Talvez justiça fosse Marielle e Anderson presentes. Como se justiça tivesse o condão de trazer o morto de volta.
Então dizemos que vítimas do crime de homicídio são aqueles que ficam vivos, precisando sobreviver no esgoto que é o vazio de permanecer vivo sem a vida daquele que foi arrancado do seu cotidiano.
A sentença não serve para tranquilizar as vítimas, que são Marinete, mãe de Marielle; Anielle, irmã de Marielle; Mônica, esposa de Marielle; Luyara, filha de Marielle; Ágatha, esposa de Anderson, e Arthur, filho de Anderson.
Homicídio é um crime traumatizante — finca no peito uma dor que sangra todo dia, uns dias mais, uns dias menos, mas todos os dias.
A pessoa que é assassinada deixa uma falta, uma carência, um vácuo. Que palavra nenhuma descreve. Toda a minha solidariedade e do Poder Judiciário às vítimas.
A sentença que será dada agora talvez também não responda à pergunta que ecoou pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro, do Brasil e do mundo: Quem matou Marielle e Anderson?
Talvez ela não responda aos questionamentos dos 46.502 eleitores cariocas que fizeram de Marielle Franco a 5ª vereadora mais votada na cidade do Rio de Janeiro nas eleições municipais de 2016 — e que tiveram seu direito de representação ceifado no dia 14 de março de 2018.
Todavia, a sentença que será lida agora se dirige aos acusados aqui presentes. E mais: ela se dirige aos vários Ronnies e vários Élcios que existem na cidade do Rio de Janeiro — livres por aí.
Eu digo sempre que nesses 31 anos que eu sirvo ao sistema de Justiça, nenhum de nós do povo nunca saberá o que se passou no dia de um crime. Quem não estava na cena do crime, não participou dele, nunca sabe o que aconteceu.
Mesmo assim, o Poder Judiciário e hoje os jurados precisam julgar o crime com as provas que o processo apresenta, e trazer às provas para o processo, para os jurados é árduo.
Porém, com todas as dificuldades e todas as mazelas de investigar um crime, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro denunciou os acusados. Eles foram processados e tiveram garantido o seu direito de defesa — e foram julgados.
Por anos exercendo a plenitude do direito constitucional de autodefesa, os acusados juraram inocência, pondo a todo o tempo em dúvida a prova trazida contra eles. Até que um dia, no ano passado, 2023, por motivos que de verdade a gente jamais vai saber, o acusado Élcio fez a colaboração premiada. Depois o acusado Ronnie a fez também.
Os acusados confessaram a execução e a participação no assassinato da vereadora Marielle Franco.
Por isso, fica aqui para os acusados presentes e serve para os vários Ronnies e vários Élcios que existem por aí, soltos, a seguinte mensagem:
A Justiça por vezes é lenta, é cega, é burra, é injusta, é errada, é torta, mas ela chega.
A Justiça chega mesmo para aqueles que, como os acusados, acham que jamais vão ser atingidos pela Justiça. Com toda dificuldade de ser interpretada e vivida pelas vítimas, a Justiça chega aos culpados e tira deles o bem mais importante depois da vida, que é a liberdade.
A Justiça chegou para os senhores Ronnie Lessa e Elcio de Queiroz. Os senhores foram condenados pelos jurados do 4º tribunal do júri da capital:
a 78 anos e 9 meses de reclusão e 30 dias-multa para o acusado Ronnie;
a 59 anos de prisão e 8 meses de reclusão e 10 dias-multa para o acusado Élcio.
Saem os 2 condenados a pagar até os 24 anos do filho de Anderson, Arthur, uma pensão.
Ficam os 2 condenados a pagar, juntos, R$ 706 mil de indenização por dano moral para cada uma das vítimas — Arthur, Ághata, Luyara, Mônica e Marinete.
Condeno os acusados a pagarem as custas do processo e mantenho a prisão preventiva deles, negando o direito de recorrer em liberdade.
Agradeço as partes, a Defensoria Pública, às defesas dos 2 acusados. Agradeço aos serventuários da Justiça, aos policiais militares. Renovo o agradecimento aos jurados.
Encerro a sessão de julgamento e quebro a incomunicabilidade.
Tenham todos uma boa noite”.