No último artigo, discutimos o impacto do poder econômico na democracia e como ele distorce o voto, transformando a liberdade de escolha em um teatro. Agora, vamos além e analisar outra narrativa que vem ganhando força: a ideia de que apenas uma pequena parcela da população, aqueles “20% heróicos”, estaria “carregando” o Brasil nas costas, enquanto o restante seria uma massa de dependentes do Estado. Essa visão simplista, convenientemente difundida por um “grande empresário” do setor de multipropriedade, ignora a complexidade da economia brasileira e reforça uma divisão perigosa. Em última análise, é uma narrativa que favorece apenas alguns poucos.
Em primeiro lugar, precisamos entender que o trabalho em suas diversas formas — seja ele formal, informal, doméstico ou de cuidado — é essencial para o funcionamento da sociedade. A verdade é que o Brasil não se sustenta apenas com empresários e funcionários formais. Na realidade, crianças, aposentados, pensionistas e beneficiários de programas sociais também desempenham papéis fundamentais, alimentando uma rede de consumo que movimenta a economia em todos os níveis. Assim, a ideia de que apenas um grupo específico “carrega” o Brasil não leva em conta essa interdependência, o que simplifica uma questão complexa e promove uma visão distorcida da realidade.
Além disso, é importante desmistificar outro ponto: programas sociais, como o Bolsa Família, não representam um “fardo” para o país. Pelo contrário, essas políticas são fundamentais para promover uma redistribuição de renda mínima em uma sociedade marcada por desigualdades profundas. Elas garantem dignidade a milhões de brasileiros e, ao permitir que essas pessoas mantenham um consumo básico, aquecem o mercado e sustentam a economia local. Portanto, afirmar que tais programas são um peso é ignorar seu papel crucial na construção de uma sociedade mais justa e equilibrada.
Se realmente queremos falar sobre alívio para os “sobrecarregados”, a solução passa, necessariamente, pela taxação de grandes fortunas. Em um dos países mais desiguais do mundo, tributar os super-ricos é mais do que uma questão de justiça social; é uma estratégia econômica. Afinal, ao contrário das classes médias e baixas, cujas rendas circulam rapidamente na economia, o capital acumulado pelos mais ricos fica, em grande parte, estagnado ou circula em esferas restritas. Com a taxação das grandes fortunas, o Estado poderia investir mais em serviços públicos e infraestrutura, beneficiando toda a sociedade — inclusive aqueles que atualmente se sentem sobrecarregados.
Outro ponto crucial é a redução da jornada de trabalho. Em tempos de avanço tecnológico e alta produtividade, manter cargas horárias longas se torna uma anacronia. Reduzir a jornada não só permitiria mais tempo para lazer, família e desenvolvimento pessoal, como também abriria vagas para mais trabalhadores. Diversos estudos demonstram que jornadas menores aumentam a produtividade e o bem-estar, criando um ambiente benéfico tanto para as empresas quanto para a sociedade. Para os “heróis” de 20%, talvez seja o momento de entender que o Brasil precisa de políticas que priorizem o bem-estar e a justiça social, e não de uma economia onde poucos acumulam enquanto muitos vivem com o mínimo.
Finalmente, precisamos nos perguntar: quem está realmente “carregando” o país? É interessante notar que a ideia de “20% sustentando o Brasil” foi compartilhada por um empresário da multipropriedade, um setor conhecido por vender “pedaços do paraíso” que, para muitos, acabam se revelando labirintos financeiros. Quem melhor para entender sobre vender ilusões? Esse tipo de narrativa é conveniente para quem se beneficia de um sistema que perpetua privilégios enquanto repassa o custo da desigualdade para a base da sociedade. Afinal, é fácil posar de “vítima do sistema” enquanto se empilham fortunas, vendendo sonhos para uns e pesadelos para outros.
Portanto, da próxima vez que alguém oferecer uma visão de “20% carregando o Brasil”, talvez devêssemos questionar a quem essa narrativa realmente serve. Em última análise, é uma visão que ignora a interdependência econômica, invisibiliza a importância das políticas sociais e transfere a responsabilidade de uma estrutura desigual para aqueles que mais precisam de apoio. Que possamos enxergar além dessa retórica e exigir um modelo econômico que realmente distribua a carga, reconhecendo que o progresso de uma nação se faz com todos, e não com uma minoria autoproclamada de “heróis” que, na realidade, estão longe de carregar o peso que dizem.