O termo Consciência Negra, como é chamada a data escolhida para a celebração do povo preto brasileiro, parece confundir parte da população e levanta discussões sobre a sua real importância. Ao longo dos anos, é comum testemunhar questionamentos daqueles que são contrários à celebração, com o argumento de que precisamos ter a tão sonhada “consciência humana”, sem excluir ninguém.
Acontece que esta data não foi escolhida sem propósito. No dia 20 de novembro de 1695, morreu Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, um dos maiores da história do país. Naquela época, a tal “consciência humana” não compreendia os homens e mulheres pretos do Brasil, que viviam como escravos e eram tratados de maneira completamente desumana, no sentido literal da palavra, aquilo que não tem humanidade.
A data faz alusão à necessidade de se ter consciência sobre os horrores vividos pelos nossos ancestrais negros que construíram o Brasil e sobre seus descendentes, que ainda hoje enfrentam o preconceito e a injustiça racial no país. Tão cruel e tão estrutural como é, o racismo afeta pessoas negras em todas as fases da vida, incluindo na infância. No dia da Consciência Negra, é de fato importante ter muita consciência sobre esta problemática e como ela pode afetar o desenvolvimento das nossas crianças.
A educação é direito de toda criança, mas o ambiente escolar pode ser hostil com crianças pretas
Além de grave, o racismo na infância está presente nos ambientes em que a criança frequenta diariamente e tem o direito de estar. Segundo dados da Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (IPEC), ao menos 38% das pessoas negras do Brasil sofreram racismo no ambiente educacional, em especial, a escola.
O POTI conversou com a psicóloga Ricarla Lira, profissional que atende crianças negras que enfrentam situações de racismo na escola, e explica o quão grave as ocorrências podem ser para o desenvolvimento pessoal e educacional:
“O Racismo afeta a autoestima, autos-segurança e autoconfiança das crianças pretas, tendo implicações significativas no seu espaço potencial de desenvolvimento e provocando baixo rendimento escolar, por (a criança) sentir o tratamento desigual, por não entender o que é, porque está vivenciando tal situação injusta, alimentando a sensação de incapacidade, se percebendo como uma criança ‘problema’’’.
Os relatos mais comuns são de exclusão das atividades e da socialização com os colegas, ofensas à cor escura e aos cabelos cacheados e crespos, perseguições e agressões físicas.
Recentemente, a empreendedora Aline Gabriel e o seu marido Fernando Gabriel, utilizaram as redes sociais para denunciar as situações vivenciadas pelo seu filho, Pedro, evidenciando o problema. O menino, que estudava em um colégio renomado de Osasco, conhecido como Fundação Fito, passou por diversas experiências de exclusão e preconceito racial por parte dos colegas. Segundo os pais, o corpo docente da escola foi negligente em lidar com a conjuntura, o que acarretou em uma aversão de Pedro com o aquele ambiente e os colegas. Confira o desabafo do casal:
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Apesar de cada experiência ser única, elas não são exclusivas. A mesma situação que o pequeno Pedro vivenciou, foi vivida por muitas outras crianças pretas do Brasil. A estudante Sammara Beatriz conta que o preconceito racial fez parte da sua infância.
“Eu sofri racismo a infância inteira. Na verdade, eu conheci o racismo muito antes de descobrir que essa palavra existia. Minha família é negra e sempre passávamos por algum tipo de discriminação, seja em restaurantes, shoppings ou em ambientes que considerávamos seguros, como a escola. A escola foi o lugar em que eu mais fui discriminada e violentada. Tudo em mim era motivo de chacota: meu cabelo, meu nariz e a cor da minha pele”, explica.
O cenário vivido por Sammara e Pedro revela outro ponto grave da problemática. Os adultos e responsáveis pela educação e proteção das crianças, falham em agir contra o preconceito no ambiente escolar. Segundo a psicóloga Ricarla, o despreparo e desinteresse em lidar com o tema apenas agravam a situação:
“Nos espaços educacionais, nos professores em geral, inclusive na psicologia, existem interesses singulares no tema, por serem geradores de tensionamentos. O desinvestimento é algo recorrente, inclusive a negação de que existe racismo dentro das instituições. São muito raros os movimentos de professores que se identificam e se responsabilizam pela prática antirracista. Por este motivo de negação, o racismo permanece eficaz.”
Somada a sua preocupação como profissional, Ricarla revela a dor de, como mãe, saber que a sua filha pode estar vulnerável a esses tipos de preconceitos, que ela mesma também enfrentou: “A experiência de ser mãe de uma criança negra nem sempre é um movimento confortável e seguro. Porque ser mãe de uma criança preta enquanto uma mulher preta, me faz acessar a criança preta que eu fui. Me faz acessar as violências que o meu corpo viveu enquanto criança. Enquanto mãe, a gente quer proteger as nossas crias e não tem como proteger a minha filha do racismo. Isso é algo que dói, que é muito doloroso saber que eu não vou conseguir proteger a minha filha do racismo, que ela não está isenta disso”, revela.
Marcas para a vida toda
Além de afetar o desenvolvimento e a capacidade de socialização das crianças, as marcas deixadas pelo preconceito acarretam problemas que as acompanham até a vida adulta. Segundo Sammara, ela ainda hoje não superou todos os traumas causados pelas agressões:
“Infelizmente, o racismo me moldou. Hoje eu sou muito menos segura de mim, da minha aparência ou de quem eu sou por causa do racismo. Não consigo nem sair de casa sem arrumar nos mínimos detalhes, é como se eu estivesse tentando prevenir esse tipo de violência. Depois de uma infância inteira sofrendo com isso, a gente começa a acreditar que a culpa do racismo é nossa, como se eu tivesse culpa de ser negra. E por esse motivo, vou me esforçar mais, me arrumar mais, agradar mais pra poder ser aceita. Eu nunca nem tive amigos duradouros na infância, porque tinha muitos traumas. Muitos desses traumas foram superados, e eu só consegui com ajuda de psicólogos e psiquiatras. Ainda não me sinto curada de fato dessas feridas causadas pelo racismo, ainda vejo muitas inseguranças em mim que partiram disso.”
Ricarla Lira, que observa marcas parecidas nas pessoas negras que atende, aponta ainda mais danos causados pelo racismo na infância e revela a gravidade dos casos:
“O racismo determina a forma como cada sujeito negro se relaciona com o mundo. Afeta a autoestima, sua forma de amar e de receber afeto, estimula a autocobrança, autocrítica, retira direitos humanos, dá a sensação de não pode errar, de ter que ser uma pessoas perfeita. Causa sensação de desvalor e extremo cansaço, corpo tensionado e estado de alerta, causa síndrome do impostor e pode reduzir a expectativa de vida.”
Como perceber o racismo na infância e lidar com a situação
Apesar de extremamente preocupantes, as consequências precisam ser faladas para que sirvam de alerta. A psicóloga indica alguns possíveis sinais que podem ser observados em crianças negras vítimas de racismo.
“Os sinais mais comuns de que a criança pode estar sofrendo racismo são características de auto-ódio reprodução de frases depreciativas a si mesmo, discurso de raiva, agressividade, baixa tolerância, senso de justiça elevado, silenciamento, isolamento e estados ansiosos” explica.
Ricarla enfatiza também a criação de espaços seguros e a formação de educadores para o reconhecimento do racismo, bem como estratégias eficazes de enfrentamento e combate a essa problemática. Além disso, ressalta a promoção de uma educação antirracista, integrando temas de diversidade étnica, história afro-brasileira e cultura afrodescendente no currículo escolar.
“Como psicóloga, abordo a questão do racismo com diálogo, legitimando a existência deste como fenômeno produtor de sofrimento. Abordo a questão a partir de uma extensa literatura de autores e personagens negros, apresentando a arte como música de artistas negros, filmes, desenhos com personagens que fomente o protagonismo negro, brincadeiras que resgate a ancestralidade, contação de histórias frequente. Explorando o potencial criativo da criança preta. Isso é promoção de educação antirracista como parte do currículo escolar, integrando pautas de diversidade étnicas, historia afro-brasileira, apresentação da cultura afrodescendente, promovendo formação para educadores sobre o reconhecimento do racismo e estratégias de enfrentamento e combate, criação de espaços seguros”, conclui a psicóloga.
Além disso, é necessário voltar para o conceito da palavra consciência. A sociedade precisa buscar coletivamente por justiça, em nome das crianças que lidam com o racismo no seu dia a dia. Um ponto crucial, são os pais de crianças brancas, que precisam ensinar os seus filhos sobre a importância de respeitar e abraçar as diferenças. É de saber popular que ninguém nasce racista, logo, nenhuma das crianças que cometem preconceito racial, agem por maldade ou baseadas em conceitos morais próprios. Estar atento ao que os pequenos escutam e reproduzem para outras crianças é essencial e demanda um esforço de todas as partes.
Edição: Larissa Cavalcante.