Por Naryelle Keyse e Victória Alves
No coração da Ribeira, onde o passado caminha em paralelo com o presente, a Rua Doutor Barata resiste como testemunha silenciosa das mudanças que definem Natal. Marcada por fatos históricos e pela promessa de um futuro renovado, ela é mais do que uma rua: é um palco onde memórias e possibilidades se encontram. Caminhar lentamente neste local histórico é um passo curto e breve para lhe transformar em uma figura que prende olhares curiosos de comerciantes e transeuntes, mas no primeiro instante você não vai entender o motivo.
O endereço tem raízes que remontam aos primeiros anos do bairro da Ribeira, cuja origem se confunde com a formação urbana de Natal. A Ribeira é o cais onde o tempo se despede. Por suas ruas, passaram cargas de açúcar, café e, mais tarde, as ideias modernistas trazidas pelos soldados americanos durante a Segunda Guerra Mundial, que moldaram a cidade. Ali, prédios erguidos entre os séculos XIX e XX ainda sussurram histórias de comércios efervescentes, festas populares e o fluxo incessante do trem que cortava o bairro.
Refletir sobre a rua que obteve anteriormente o topônimo “Rua das Lojas” é rememorar tudo o que ela já significou para o comércio da região atravessada de momentos importantes da cultura natalense, como a abertura da primeira livraria de Natal, fundada por Fortunato Aranha — comerciante e membro da elite da cidade — no final do século XIX. O estabelecimento foi considerado ponto de encontro para expoentes da literatura potiguar, políticos, boêmios e comerciantes da época, reforçando o trânsito de frequentadores nos entornos.
Dentre tantos prédios tombados, conhecer a história da Rua Doutor Barata é impressionar-se com as transformações comerciais vividas dos anos 1940 aos dias atuais. Se nos anos de ouro da rua, em meados do período da Segunda Guerra Mundial, estas calçadas eram abarrotadas de consumidores e as fachadas eram de lojas consideradas de alto padrão, hoje o que se nota é uma mudança drástica nos comércios que ali resistem. A área sustenta-se consideravelmente por impulsão do Rio Potengi e do Porto de Natal, a partir da atividade pesqueira e também do comércio e assistência técnica voltada a motores, bombas e peças náuticas.
Transformação e restauração de espaços
Os prédios vazios e suas fachadas — aparentemente — abandonadas são como cicatrizes que lembram um passado glorioso, mas que agora clamam por atenção, esperando que alguém redescubra a beleza que ainda reside sob tais arquiteturas banhadas por paredes densas de história.
Para a arquiteta Ilanna Paula Revorêdo, trabalhar com os antigos prédios da Ribeira é apaixonante:
“O que me motivou, é porque realmente quando você começa a pesquisar e trabalhar um pouco mais sobre isso [prédios históricos], você vê o quanto é apaixonante, né? E eu sempre acho que tem um grande potencial que é extremamente desperdiçado ali”.
A partir de tal paixão, a arquiteta viu o entrelaçar de suas memórias afetivas de infância com a sua vontade de transformar esses espaços, pensando em uma maior valorização do potencial histórico-cultural arquitetônico de Natal.
Ilanna Revorêdo é responsável pela restauração de alguns dos empreendimentos da região, entre um dos mais famosos, o prédio “A Samaritana”. Dentre tantas memórias e peculiaridades marcadas no endereço, para além das características singulares associadas ao próprio projeto arquitetônico, Ilanna diz que “Todo mundo lembra muito do Cinecafé Frenesi, que foi de Arruda Salles, e na década de 80 até mais ou menos 83 fez grande sucesso lá”, e traz uma informação que já não é tão rememorada na história de tal edificação. “Acabam lembrando muito mais desse detalhe [Cinecafé Frenesi] do que um outro fato histórico que eu considero muito mais importante, que é o fato do Jornal O Diário, que foi criado pelo jovem Djalma Maranhão e mais três amigos para ser a voz independente da cidade Durante a Segunda Guerra. Então, em uma das salas do pavimento superior, funcionava o primeiro jornal independente da cidade. Então, isso é realmente algo muito peculiar”, pontua.
A arquiteta também fala sobre os recursos captados para o empreendimento: “O prédio da Samaritana em si, é um prédio também que foi feito com recursos das leis de incentivo, nesse caso, a lei Djalma Maranhão, através da Funcarte e a prefeitura do Natal, com o incentivo da Unimed, e na primeira etapa também da DNA Center” cita ela. Revorêdo expõe a importância dessa etapa de captação dos recursos. “Já que lá é um espólio de família, a gente tem um inventariante que é quem tomou a frente e realmente teve uma grande batalha até conseguir consolidar e ter segurança jurídica para que a gente pudesse tomar o projeto à frente, certo? E aí teve também essa parte de captação”, revela.
A Ribeira de hoje
O esplendor foi cedendo espaço ao abandono. Nas últimas décadas do século passado, a Ribeira se tornou um reflexo das crises econômicas e sociais que atingiram a cidade. O bairro resistia, mas a motriz econômica e cultural pareciam ambas enfraquecidas.
Foi nesse cenário que, em 2017, a Galeria de Arte B-612 abriu suas portas na Rua Doutor Barata, nascida do sonho de Anchiêta Miranda. “A escolha do local veio pela adaptação perfeita do prédio construído por Ulysses de Góis”, diz Anchiêta, explicando como a história do edifício, projetado para ser uma cooperativa de crédito, se alinhou à vocação artística do novo espaço.
Durante seus quatro anos de funcionamento, a galeria promoveu exposições de artistas potiguares, oficinas de pintura para crianças e o projeto “Criatura e Criador”, que transformava o ato de criar em um espetáculo compartilhado entre artistas e público. “A interação era mágica”, relembra Anchiêta, com o brilho de quem sabe o valor da arte como experiência coletiva.
Mas nem mesmo a arte foi imune ao abandono que ainda pairava sobre a Ribeira. A falta de estacionamento e os problemas estruturais do bairro obrigaram ao fechamento temporário da galeria. Contudo, a resistente Ribeira renasce. Os projetos de revitalização da Prefeitura de Natal trazem novo ânimo, e Anchiêta se diz otimista. “Chegou a vez da Ribeira. O futuro é promissor, e a Galeria B-612 vai fazer parte dessa transformação”.
Entre as iniciativas recentes que foram levadas à Rua Doutor Barata, está o Hospital Municipal Veterinário de Natal, inaugurado no dia 10 de setembro de 2024. O primeiro hospital público da cidade dedicado à saúde animal já realizou mais de 629 consultas clínicas e cerca de 1.800 procedimentos ambulatoriais somente no mês de outubro. A iniciativa atrai moradores e seus animais de estimação à rua, movimentando o comércio local e ajudando a ressignificar a relação da cidade com a Ribeira. Para comerciantes locais, o serviço ofertado aos bichinhos têm agregado ao bairro, e se dizem esperançosos para o fortalecimento do comércio local que ainda carece de estabelecimentos de serviços considerados essenciais.
A volta da Galeria B-612
Com a reabertura prevista para os próximos meses, a galeria será ampliada, contará com estacionamento próprio e retomará suas atividades artísticas e educativas. “Nossa missão é difundir o Bem, o Bom e o Belo”, afirma o fundador, enfatizando a importância do espaço como motor da economia criativa local.
A Rua Doutor Barata é uma metáfora da Ribeira: resiliente, cheia de camadas de história e pronta para florescer novamente.
“Essa rua não é apenas um endereço; é um testemunho de que resistir vale a pena”, conclui Anchiêta.
A Rua Doutor Barata se estende da Travessa Aureliano até a Avenida Tavares de Lira. Veja: