A cidade do Natal está prestes a completar 424 anos desde a sua fundação. A biografia da capital potiguar é extensa, com muita coisa pra se contar. Cada avenida, rua, prédio, praça e estátua tem o seu próprio enredo que, de pouco em pouco, constrói o enredo de uma cidade viva. É tanta história pra contar, que algumas acabam ficando de escanteio entre todas as narrativas, tornando-se crônicas desconhecidas pelos moradores.
Em um emaranhado de ruas que cortam e formam Natal, os lugares mais estreitos também têm espaço para histórias impressionantes. Afinal, como a história de um padre e um sambista podem se cruzar em uma mesma rua, se suas trajetórias estão a décadas de distância? A Rua do Motor, que fica ali entre a Praia do Meio e Areia Preta, ajuda a entender como.
Tudo começa com uma personalidade já bem conhecida em Natal, o grande Padre João Maria, considerado um santo da cidade, mesmo não sendo reconhecido como tal pelo Vaticano. Nascido em 1848, o Padre João Maria ganhou notoriedade por ter dedicado a sua vida a atender os anseios dos mais pobres e necessitados, chegou a defender abertamente a abolição da escravidão em uma época que o assunto causava polêmica dentro da própria igreja católica.
Naquela época, o Brasil e o nordeste viviam uma realidade ainda mais desafiadora que a atual, com a população enfrentando a pobreza extrema, fome e doenças. Tudo ficou ainda mais difícil quando a epidemia da varíola chegou ao país. Segundo o professor e mestre em história Henrique Lucena, a falta de condições de saneamento da época foi um dos fatores que contribuíram para a sua proliferação: “No final do século XIX e início do século XX a varíola foi muito comum em todo o território nacional, tanto nas zonas rurais como urbanas. Sua proliferação se deve principalmente às más condições ou até mesmo inexistência de saneamento nas zonas em que agiu”, explica.
E é nesse cenário que a Rua do Motor passa a fazer parte dessa história e da trajetória do Padre João Maria. Na intenção de ajudar os pacientes da varíola que definhavam em sofrimento em Natal, João Maria descia até a rua para buscar água, que seria levada para o tratamento e consumo dos pacientes que eram cuidados nas redondezas, em especial no bairro de Petrópolis, naquela época chamado de Cidade Nova. E foi assim que durante o período da varíola na cidade, o padre ajudou os doentes e ganhou o seu reconhecimento. Mas, infelizmente, tornou-se uma das vítimas da varíola e faleceu em 1905, aos 57 anos.
Quase 60 anos depois, a Rua do Motor ainda era um ponto de referência para o abastecimento de água da região. Ali existia um motor que puxava a água para que fosse captada e consumida pelos moradores, fato que deu o nome para a rua.
Nessa época, nos anos 60, na mesma rua, dona Francisca Pereira esperava o seu filho caçula. Um menino, que se chamaria Eriberto e seria um dia, um grande amante do samba. Mas foi quando a criança tinha por volta dos seus três anos de idade, que a sua história se cruzou com a do Padre João Maria. O pequeno menino contraiu meningite, doença grave e que pode causar mortalidade infantil. Preocupada, a sua mãe tomou uma decisão:
“Minha mãe, na época, fez uma promessa ao Padre João Maria. Pela minha melhora, né? Para eu ficar bem, porque a meningite era uma doença que matava mesmo. E aí, com a sua graça, ela mudou o meu nome para João Maria Marques da Silva”, conta o seu João Maria, batizado em homenagem ao padre que, décadas antes, passava pela sua rua para buscar água e ajudar os enfermos.
E o seu João cresceu ali, na Rua do Motor, em meio à mesma vizinhança que, segundo ele, praticamente não mudou. Essa relação e o laço entre vizinhos foi o que durante anos, fez a rua manter uma sensação de união. Porém, conforme o local mudou, essa relação também foi modificada.
A estudante Elaine, que trabalha em um comércio também nascida e criada na Rua do Motor, fala sobre as lembranças que guarda dos momentos de união entre os vizinhos e a rápida mudança que aconteceu nessa relação:
“Eu moro aqui desde pequenininha e aqui mudou bastante. Antes, não tinha tantos primeiros andares como hoje. Não era asfaltado, sempre vivia em obra e era aquela areia barrosa, sabe? Tinha muito o bar, era muito mais movimentado, as pessoas eram mais unidas em relação a Copa do Mundo, festividades, São João feito na rua. Hoje em dia não, parece que todo mundo mais na sua e apesar disso é a mesma vizinhança. Tem a escola de samba daqui, o ‘ Em Cima da Hora’, que quando eu era pequena, eu via que o pessoal aqui era muito samba no pé”
O samba é outro personagem que marcou a história da Rua do Motor. Trabalhando como motorista, mas levando o samba como parte da sua vida, João Maria comenta sobre os tempos de glória do ritmo no local, que até mesmo movimentava o comércio:
“No dia do samba a gente lotava esse espaço aqui. Vinha gente de fora, do Rio de Janeiro, São Paulo, vinha todo mundo. Todo mundo que vendia, barraqueiros, os caras que não iam nem pra praia quando tinha samba no domingo aqui. Todos vendiam, todos os ambulantes vendiam.”
Infelizmente, a cultura do samba na Rua do Motor também passou por um processo de declínio relacionado ao distanciamento entre os vizinhos. João Maria explica que o samba passou a incomodar alguns dos moradores mais velhos da região:
“A gente já tá tentando voltar, mas eu tô preocupado com o denúncia, o pessoal denuncia, entendeu? Eu acho que se tivesse mais união, aí que a gente faria, porque a música mexe com o sentimento de todos. Sabe que a música é infinita, né!? Mas não é todo mundo também que tem aquele gosto, aquele costume pela música”.
O que restou de mais importante foi a escola de samba “Em cima da hora”, uma das principais representantes da Praia do Meio no samba potiguar. A escola ainda mantém as suas atividades, levando alegria, arte, educação artística e cultura para a região da praia do meio.
Edição: Larissa Cavalcante.