Produtora audiovisual 'Passa a Visão' coloca periferia e negritude em protagonismo - O POTI

Produtora audiovisual ‘Passa a Visão’ coloca periferia e negritude em protagonismo

Produtora é responsável pelo curta-metragem “Felis”. Foto: Auana Câmara.

“Possibilitar novos imaginários através da real imagem da periferia potiguar, gerando também novas oportunidades de desenvolvimento profissional através do audiovisual”.

Este é, segundo Jane Gomes, o objetivo da produtora Passa a Visão, responsável pelo curta-metragem “Felis”. Além de ser responsável pela produtora, Jane ainda roteirizou o filme, dirigido por Caio Medeiros. 

O curta foi lançado em fevereiro e aborda a história de Janaína (Bruna Morais), uma jovem repórter que passou por uma perda gestacional e retorna às suas origens, após descobrir que sua avó, Felismina (Maria Gorette), foi diagnosticada com a doença de Alzheimer. Janaína e sua mãe, Carolina (Célia Bombom), passam a cuidar da matriarca e enfrentam a instabilidade do cotidiano de quem convive com o transtorno.

A relação da obra com a periferia natalense é intransigente. Jane Gomes nasceu em Mãe Luiza, bairro na Zona Leste da capital potiguar. Da sua mente criativa e das colaborações essenciais da comunidade, nasceu “Felis”, que foi capaz de cumprir com os objetivos mencionados pela produtora:

“Mãe Luiza é parte fundamental não só no processo do curta-metragem, como também na produtora. A maior parte das cenas foram feitas lá, muitos dos serviços utilizados na produção são de fornecedores de lá, e isso faz parte dos nossos objetivos: a geração de renda, movimentação da economia criativa e formação de plateia, para que os nossos, os locais, também possam se ver nas telas e se sentirem representados através do audiovisual”

Com a claquete em mãos, Jane Gomes acompanha as gravações de “Felis”. Foto: Auana Câmara.

Para a roteirista, além da periferia, abordar o tema do Alzheimer também tem um fator pessoal. A personagem Felismina, que dá o nome ao curta, foi inspirada em sua avó, Dona Nina, que convive há 10 anos com o diagnóstico

“É de extrema importância que conversemos sobre o Alzheimer e o cuidado que é proporcionado aos idosos de forma geral no Brasil. O abandono é uma realidade muito forte nos lares brasileiros, muitas vezes devido à falta de conhecimento sobre o assunto”, explica Jane.

Atualmente, Dona Nina vive sob os cuidados da filha, Janaína, mãe de Jane, cujo o nome foi dado à protagonista como uma homenagem. 

Apesar de extremamente pessoal, a obra foi realizada de maneira coletiva e conta com o apoio de outras figuras talentosas. Mesmo aqueles que não são de Mãe Luiza, trazem colaborações que vão além dos grandes centros da capital. Em “Felis”, Caio Medeiros, que nasceu no município de Currais Novos, faz sua estreia como diretor em cinema e enfatiza a importância das oportunidades: 

“Essas partes que não tem tanto foco do poder público, como no interior ou comunidades de Natal, nesses lugares tem gente extremamente talentosa, só à espera de uma oportunidade para mostrar o seu talento. Então, eu vejo que é isso que esse filme representa. Além do assunto principal, a questão do Alzheimer, essa questão de ‘a gente tem talento, nossos lugares têm talento’. Precisam ser ouvidos e precisam ser vistos”

Com seu primeiro trabalho, Caio já garantiu indicações a prêmios em festivais de cinema. Fotos: Auana Câmara.

A palavra “oportunidade” é recorrente em discussões sobre a indústria cinematográfica, que sempre se demonstrou excludente com minorias. Contemplado na Seleção Pública Cine Natal de 2022, edital publicado pela Secretaria de Cultura de Natal (Secult-Funcarte), o curta destaca-se pelo seu protagonismo preto e periférico em todas as esferas. 

No âmbito do cinema, estes grupos são constantemente preteridos e desvalorizados. Em 2015, a renomada atriz Viola Davis fez história, se tornando a primeira atriz negra vencedora do Emmy de Melhor Atriz de Série Dramática, pelo seu papel como Annalise Keating, na série “Como Defender um Assassino”. Em um discurso de agradecimento emocionante, a atriz afirmou: “A única coisa que separa mulheres negras de outras pessoas, é oportunidade”. 

Com a oportunidade que lhe foi dada através do edital, Jane optou por investir neste protagonismo e criar ela mesma ainda mais oportunidades para mulheres negras, que estrelam o curta:

“Quanto mais as pessoas pessoas negras se verem no papel de protagonista, não só no audiovisual, como em outros ramos, mais nos sentiremos capazes de ocupar espaços que muitas vezes colocam como inalcançáveis”, argumenta. 

Produtora optou por valorizar o protagonismo de atrizes pretas. Foto: Auana Câmara.

Para além do protagonismo nas telas, o trabalho por trás das câmeras também buscou dar oportunidade para outros trabalhadores negros. Maria Heloisy, que atua como trancista, ficou responsável pelo cabelo e maquiagem das atrizes. Segundo a profissional, essa primeira experiência em um trabalho do audiovisual e o resultado da obra foram encantadores: 

“Fiquei muito feliz pelo convite, sempre tive vontade de fazer esse tipo de trabalho pois sou admiradora do audiovisual e seria tudo participar fazendo o cabelo das personagens. Foi uma experiência única, não sei nem como explicar o quanto foi incrível, eu tive a oportunidade de conhecer todo mundo e poder participar na produção de um curta-metragem foi muito encantador, ver tudo por trás das câmeras foi um sonho realizado. A galera mais massa que eu já trabalhei e o curta que Jane escreveu ficou muito comovente e lindo, sou muito fã desse trampo. Ver meu trabalho nessa produção foi uma realização imensa, nem nos meus melhores sonhos eu conseguiria imaginar foi muito incrível.”

Maria Heloisy preparou as protagonistas da trama. Foto: Auana Câmara.

Com tantos talentos envolvidos, o curta-metragem tem conquistado a audiência de maneira tocante. Neste mês, “Felis” foi selecionado para a 5ª Mostra Itinerante de Cinemas Negros – Mahomed Bamba, que acontece em Salvador. Além de ser exibido para novos públicos, o filme concorreu aos prêmios de Melhor Filme de Ficção, Melhor Roteiro e Melhor Trilha Sonora, sendo o único representante potiguar.

O diretor, Caio Medeiros, conta sobre a emoção que cada exibição do curta proporciona:

“A sensação eu nem sei como comentar. Quando a gente fez a primeira exibição lá em Mãe Luiza mesmo, nossa, eu fiquei muito emocionado. Queria ver todo mundo que estava na produção do filme, que atuou, que produziu. Eu também, vi a comunidade assistindo aquele filme e foi uma sensação assim, que não sei como explicar. Depois disso, teve exibição na TV, eu estava assistindo sozinho em casa, fiquei ansioso. Mandei o link para os meus pais assistirem, mandei para todo mundo lá em Currais. E foi tanto em Natal quanto em João Pessoa, então foi se espalhando. E agora a exibição em Salvador, né? Isso, meu Deus, não sei nem como reagir. Então, é loucura”, explicou. 

Para Jane, a sensação de ver o seu trabalho alcançar o público e novos horizontes é única: “ É uma sensação muito boa. Um sentimento de que realmente podemos mudar as coisas a partir do nosso desejo é esforço. Sentir que posso, pra quem veio e está em área periférica, é um sentimento muitas vezes raro”, conta. 

Fique de olho na produtora

Agora, a Passa a Visão se prepara para dar os seus próximos passos. Responsável por um Podcast de mesmo nome, a produtora está no processo de pré-realização da terceira temporada do produto, que pode ser assistido através do YouTube, confira: 

Além disso, aqueles que gostaram de “Felis” podem se preparar para mais projetos do tipo, porque a produtora se prepara para gravar um novo curta-metragem ainda em 2024. 

Gravado e ambientado em Mãe Luiza, curta-metragem potiguar é selecionado para festival internacional de Cinemas Negros