“O que você quer ser quando crescer?” Quem nunca foi questionado sobre o assunto ainda nos primeiros anos de vida? Foi o que aconteceu com Ana Luísa também. Ela é natural de Caicó, cidade assolada por um clima semiárido rigoroso, com temperaturas que chegam aos 40ºC e pouquíssimas chuvas.
Ana Luísa conta que só veio saber responder essa pergunta muito depois de chegar à vida adulta, quando já tinha passado por duas graduações e trabalhado em diversos ambientes, muito diferentes entre eles.
Ela diz que sua resposta foi construída ao longo de sua vida e proporcionada por um programa social do governo federal, o Bolsa Família, que completou 20 anos de existência em 2023. De acordo com Ana, foi ele que lhe proporcionou vivenciar diferentes experiências e lugares, fazendo com o que ela entendesse que podia tudo, que a realidade onde ela vivia não podia condicionar o seu futuro.
Ana Luísa foi a primeira de seus três irmãos a ter um diploma de nível superior. Filha de um pedreiro e de uma bordadeira, ela diz que por muitas vezes ouviu pessoas falarem que ela seria “apenas” mais uma bordadeira da família.
“Eu não estou diminuindo, mas falta sonhar. Quando você amplia a sua visão de mundo, entende que pode ser muito mais”, afirma.
Os programas sociais dos governos estadual e federal começaram a fazer parte da vida diária de Ana Luísa ainda na adolescência, quando a família conseguiu ter acesso ao Bolsa Família, ao programa do leite, ao sopão, e alguns outros.
Ela narra como o Bolsa Família foi sabiamente usado por seus pais para enriquecer a educação dela e de seus irmãos, que hoje também têm mais de um diploma de ensino superior. De acordo com Ana, apesar dos pais não terem um nível de formação mais elevado, sempre fizeram questão de que os filhos estudassem.
“Meus pais sempre exigiram da gente o foco na escola, mesmo que eles não tivessem terminado o ensino médio. Minha mãe obrigava [a ir para a escola] e dizia nós tínhamos a obrigação de concluir pelo menos o ensino médio. Não era nem um estímulo, era uma determinação”, lembra.
Ela recorda ainda que o primeiro computador a entrar no lar foi comprado com o dinheiro do benefício e era usado para pesquisas acadêmicas e trabalhos escolares. “Muitas vezes a gente precisava ir à lan house e nem sempre tínhamos dinheiro. Então, meus pais pegaram o auxílio mensal e investiram em um computador e num pacote de internet mensal, já que os livros das escolas [públicas] quase sempre estavam defasados e os laboratórios de internet não funcionavam”, relembra.
Foi por meio desse computador que Ana Luísa descobriu o curso de bacharel em Relações Internacionais e, assim que terminou o ensino médio, decidiu concorrer a um bolsa de estudos do Prouni, já que o curso só era oferecido em uma faculdade particular. O programa lhe concedeu uma bolsa de estudos de 50% e o padrinho e os pais se ofereceram para pagar os 50% restante.
Apesar de ser uma vitória, as aulas do curso eram ministradas presencialmente em Natal, o que se tornou outro obstáculo a ser vencido pela família. Foi aí que os pais de Ana Luísa decidiram que ela moraria com os avós na capital para estudar, algo muito comum entre os jovens nascidos no interior do estado.
“Foi muito difícil porquê minha bolsa em RI era de 50%, então meu padrinho pagava uma parte e meus pais pagavam a outra. Meus avós e uma tia rachavam o dinheiro do meu transporte em Natal”, conta.
Sempre inquieta em busca de conhecimento, ela diz que procurou emprego na capital para ajudar com os custos, mas não conseguiu porquê as empresas não queriam contratar pessoas sem experiência. Então, ela decidiu fazer um vestibular e conseguiu uma vaga no curso de Produção Cultural no Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). Assim, passou a estudar o dia inteiro.
“No IFRN eu consegui uma bolsa dentro do setor de Serviço Social que me ajudou bastante. Essa experiência já me abriu outra porta, eu fui ser estagiaria na Codesp, na Secretária de Educação, e lá eu conheci uma pessoa que viu meu trabalho e me levou para ser recepcionista do Alphavile. Por causa disso, tive que sair da casa dos meus avós para ficar perto do meu trabalho”, afirma Ana Luísa.
Em 2016, Ana Luísa mudou novamente e foi trabalhar no Grau Técnico, onde começou como auxiliar administrativa e hoje é gestora-diretora de três unidades da empresa no Rio de Janeiro, e sócia de uma das unidades.
“Sem os programas sociais eu não teria conseguido nada disso, claro que também pelo ambiente familiar que eu tenho. Apesar de ser de família humilde, meus pais sempre entenderam a importância de estudar”.
Ana Luísa destaca os irmãos também usufruíram dos programas sociais. Hoje, a irmã mais nova, Jéssica, é formada em Tecnologia da Informação, Enfermagem, e está cursando o técnico em Vestuário. Já a irmã mais velha, Luciana é formada em História. E o irmão, está se graduando em Gestão Comercial.
“Hoje, todos os filhos da minha mãe terminaram o ensino médio e estão em graduação. Com certeza, o suporte dos programas sociais possibilitou isso”, dia Ana Luísa, cheia de orgulho.
Mas ela lembra que não é apenas usar o programa social, é necessário usar com sabedoria e saber a hora de abrir dele, evitando ficar dependente dele. Foi o que aconteceu com a família de Ana, que, como foi relatado por ela, usou o Bolsa Família para investir na educação dos filhos e dar uma chance de ter “uma vida melhor”, e ainda solicitou o cancelamento do pagamento quando os filhos começaram a trabalhar.
“O mais importante é a conscientização de entender, e graças a Deus a nossa família entendeu, que aquilo era necessário, mas que a gente não queria aquilo para sempre. E isso depende muito dos chefes da família, porquê os meus, apesar de tudo, estimularam muito a gente ao estudo”, diz ela.
Apesar de ser um escape para muitas famílias, assim como foi para a de Ana Luísa, o Bolsa Família sempre foi muito criticado por políticos e brasileiros que não entendem como funciona um programa social com objetivo de criar políticas públicas e melhorar o desenvolvimento da população. Como um primo dela, que certa vez pediu para que os chefes da família abrissem mão do programa para entrar em um esquema de pirâmide financeira.
“Minha mãe disse que não podia fazer para não perder o benefício e ele ficou dizendo que a gente queria ganhar dinheiro fácil. E assim, é muito fácil para o outro acusar de facilidade uma família querer um programa social sem entender a importância daquilo para o dia a dia. Quando você vem de uma família com quatro filhos, autônomos, que dependem da força braçal, é muito fácil julgar isso”, afirma ela relembrando o caso.
Outra coisa que a internacionalista fala é sobre como tudo isso mudou o futuro de todos os membros da família, como seus sobrinhos, que hoje não precisam esperar por alguma ajuda ou sequer pensam que não existe a possibilidade de não conseguir algo por causa de suas origem e condição financeira.
“Quando eu olho para trás e vejo aquela menina que achava que não podia nada e hoje tem três graduações. Isso [ajuda dos programas sociais] nos fez ganhar o mundo”, relata orgulhosa.
O Bolsa Família em números:
A família de Ana Luísa não foi a única que conseguiu alcançar o sucesso educacional e a independência financeira a partir do Bolsa Família. Apenas nos primeiros nove meses deste ano, três milhões de brasileiros deixaram a linha da pobreza por causa do programa. Desses, 470,9 mil são do Rio Grande do Norte.
Neste mês de dezembro, o RN deve receber um aporte de R$ 337,6 milhões para dividir entre as mais de 503 mil famílias que recebem o benefício no estado. No mês passado, o valor médio pago a cada uma dessas famílias foi de R$ 670,68.
Entre os municípios com o maior número de famílias beneficiárias do programa estão: Natal (787 mil), Mossoró (34,8 mil), Parnamirim (24,8 mil) e Macaíba (14,4 mil).
Há ainda um levantamento feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) que chegou à conclusão de que 45% dos filhos do bolsa família que se beneficiaram do programa entre os anos de 2015 e 2019, passaram pelo mercado de trabalho formal.
A lei das Cotas como programa social
Um outro programa utilizado por Ana Luísa e seus irmãos para ter acesso ao ensino superior foi a lei das Cotas, que garante uma reserva das matrículas nas universidades e institutos federais a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, pretos, pardos, indígenas e famílias de baixa renda.
No mês passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou uma reforma na lei, que mexeu em pontos como renda máxima para estudantes de famílias baixa renda, ampla concorrência, proporcionalidade, quilombolas e auxílios.
Senado aprova uma série de alterações na Lei de Cotas e torna medida permanente